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Tributo : Ferramentas do meu passado

Luis Moura / 2020-07-25


Resumo

Nos meus primeiros anos na construção, nos USA, a minha profissão era de framer carpenter.1 Trabalhava essencialmente na construção estrutural em madeira, de moradias uni-familiares. Para um framer existem um conjunto de ferramentas essenciais: fita métrica e lápis, serrote elétrico e o martelo. Muitas outras ferramentas são também utilizadas, mas não com a mesma frequência. Cheguei a ter semanas de trabalho, que poderiam ser resumidas a “medir, cortar e pregar”.

Mas mesmo dentro dessas três ferramentas, o martelo era o que mais frequentemente estava na minha mão. Mesmo que as pistolas de pregos tenham vindo aliviar o uso do martelo, este acaba sempre a ser usado, seja para completar no uso da pistola pneumática, ou mesmo para pregar em zonas apertadas, que não permitem a utilização da pistola.

Passado um certo tempo, o martelo começa a fazer parte do corpo do framer. Passa a ser uma extensão metálica do braço, que consegue mover uma parede (de madeira), pregar, separar vigas de madeira quando estas estão “coladas” umas nas outras por causa do gelo, enterrar estacas no chão, etc…

O Martelo

O martelo de “framer” é uma ferramenta pesada. Sendo \(F=ma\), quanto maior for a massa do martelo, maior será a força do golpe, desde que se consiga a aceleração necessária, e esta depende quase somente da massa muscular do “framer”. Foi necessário um ano inteiro de uso intenso do martelo, até eu conseguir a massa muscular para o seu uso correto e produtivo. Nas primeiras semanas, para além de acabar o dia de trabalho sem conseguir movimentar os braços devido ao cansaço muscular, também tinha as minhas mãos cheias de bolhas. E isto era pior na mão e braço direito, visto eu ser destro. Ao final de um ano de intenso uso do martelo, os meus músculos tinham-se moldado para a tarefa. De uma forma natural, tinha concretizado o que seriam necessários anos de ginásio. Mas não eram só os braços que estavam moldados. Todo o corpo encontrava-se diferente, maior. Nunca conheci um framer que tivesse excesso de peso, pelo menos um que fosse bom.

Consciente ou não, é feita a associação entre o desenvolvimento físico e o uso do martelo. Para além de ser um instrumento de trabalho, também é uma peça de ginásio, e acho que escuso de explicar o tão importante que isso é para um miúdo de vinte anos.

O martelo, a dada altura, também começa-se a adaptar ao framer. O cabo do martelo começa a ficar desgastado aonde é mais agarrado. Na medida que o desenvolvimento físico o permita, também o local aonde se coloca a mão no cabo se vai alterando com o tempo. Ao princípio, enquanto a força muscular não o permite, o martelo é agarrado a meio cabo. O princípio simples do Momento (M) explica a razão. Sendo \(M=b \times F\), quanto maior for o braço (b), maior será o momento, e o cansaço muscular. Assim, nos primeiros meses do uso do martelo, eu começava o dia a agarra-lo pelo final do cabo, mas não demorava muito para a minha mão descer para meio cabo, para aliviar os músculos. No final do dia, o ato de martelar, nada mais era que eu levantar o martelo, e deixar que a massa deste junto com ação gravítica, fizessem o resto, ou seja, levantava o martelo e deixava-o cair nas cabeça do prego, sem aplicar nenhuma força (F) muscular.

Hoje em dia já não tenho o meu primeiro martelo, mas era igual a este. De notar que este não é um verdadeiro martelo de framer, pois as orelhas apresentam uma curvatura acentuada

Figure 1: Hoje em dia já não tenho o meu primeiro martelo, mas era igual a este. De notar que este não é um verdadeiro martelo de framer, pois as orelhas apresentam uma curvatura acentuada

Assim, um martelo de um principiante, mostra um maior desgaste a meio cabo. Normalmente os cabos dos martelos de framing, são revestidos com algum tipo de borracha, de modo a serem mais confortáveis, mais fáceis de agarrar e reduzir as vibrações do impacto. Quando o martelo é novo, o revestimento do cabo tem ranhuras, de forma a aumentar a aderência entre o martelo e a mão. Com o uso, as ranhuras tendem a desaparecer, e elas desaparecem mais rapidamente, no local mais utilizado para agarrar o cabo.

Na cabeça do martelo, no lado utilizado para pregar, também existe um desgaste do ferro de acordo com a sua utilização. No meu caso, como utilizava a mão direita para pregar e como o ângulo da batida com a horizontal seria sempre igual ou inferior a 90 graus, fez um desgaste no ferro do lado direito, muito superior ao esquerdo. Um canhoto que utiliza-se o meu martelo, iria certamente entortar alguns pregos durante o seu uso.

Com o passar dos anos, o martelo ajustasse ao seu utilizador e por sua vez, o framer consegue reconhecer o seu martelo de olhos vendados, tanto pelo peso, como pelas características geométricas. No caso do meu martelo, era fácil de o reconhecer, pois tive que colocar fita de electricista em redor do cabo numa zona de grande desgaste.

Duas décadas

Já passaram mais de vinte anos desde que comprei o meu segundo martelo e dezenas de outras ferramentas. Muitas foram perdidas, levadas por engano (!), ou simplesmente concluíram o ciclo de vida, mas o martelo mantém-se comigo. Ainda hoje é a ferramenta que me acompanha em qualquer reparação na casa.

Por mais de duas décadas, este é o martelo que me tem acompanhado

Figure 2: Por mais de duas décadas, este é o martelo que me tem acompanhado

Mesmo que profissionalmente, tenha trocado o martelo para um computador, o segundo jamais vai conseguir ocupar o lugar do martelo, tanto na durabilidade (já mudei tantas vezes de computador nas últimas décadas que perdi a conta), como na personalização (não consigo reconhecer o meu computador de olhos vendados), como nas histórias que passámos juntos. Não tenho nenhuma história com um computador em que quase ia morrendo, mas tenho várias com o martelo.

Ferramentas

Neste blog, tenho escrito sobre vários softwares, linguagens informáticas e outros utensílios que eu utilizo no meu computador e os quais, facilitam o meu trabalho, aumentam a eficiência e resultam num produto final que pode ser facilmente partilhado com os restantes elementos da equipa de um projeto. Mas até hoje hoje nunca tinha escrito sobre uma ferramenta manual.

De pouco importa a qualidade das peças desenhadas e escritas, se depois a execução é fraca. Já vi projetos com bastante qualidade na sua documentação, mas que o resultado final ficou aquém dos objectivos devido a baixa qualidade na execução. E o inverso é também verdade. Projetos que atingiram os seus objectivos, mesmo quando as peças escritas e desenhadas, eram no mínimo medíocres e careciam de informação (já para não falar nos erros).

É pois importante não esquecer as ferramentas manuais. Aquelas que vão realmente construir o projeto, tornar um conceito em uma realidade.

… E assim nasceu o tributo ao meu martelo.


  1. https://en.wikipedia.org/wiki/Framer